segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Vamos fazer de conta que todos os dias é o dia do professor

Domingo, dia 15, foi o dia do professor. As redes sociais “bombaram” com felicitações aos mestres, nas salas de aula os alunos fizeram festinhas com os indefectíveis salgados e refrigerantes (vão continuar passando o resto do ano enchendo a paciência do professor), algumas escolas vão passear com seus professores ou oferecem jantares ou almoços para comemorar o dia (igualzinho enganar criança) e na TV o ministro da educação veio parabenizar, em rede nacional, aqueles que ele não valoriza. A partir da segunda-feira, dia 16, tudo voltou ao normal: professores mal formados, salas lotadas, excesso de aulas e escolas mal equipadas. O Dia do professor é um faz-de-conta, um conto de fadas que dura 24 horas.  
Podem achar que sou um sujeito amargo. E sou mesmo! O que há para comemorar nesse dia? A falta de reconhecimento, a não valorização, a baixa remuneração, o descaso. Os discursos que ouvimos de que “educação é essencial”, que “o professor é a profissão mais importante” é pura balela. Ninguém dá a mínima para a educação. E não estou falando apenas do governo. Estou falando de TODOS. Muitas vezes até o próprio professor não valoriza a profissão. Em que país sério metade dos alunos de pedagogia, mais precisamente 52,4%, estão fazendo o curso à distância, segundo a IDados, empresa especialista em dados de educação?
Para dá um exemplo do quanto não valorizamos a profissão de professor, façamos três perguntas: existe curso de Medicina a distância? Existe curso de Direito a distância? Existe curso de Engenharia a distância? A resposta para as três perguntas é uma só: NÂO. Por uma simples razão: essas três profissões (médico, advogado e engenheiro) são verdadeiramente respeitadas no país.
Continuo a fazer perguntas: você já viu médico advogando? Ou engenheiro clinicando? Ou até mesmo advogados e médicos projetando prédios ou automóveis? As repostas continuam sendo não. Mas com toda certeza você já viu médico, advogado e engenheiro dando aulas.   
Não é a toa que 49% dos alunos que iniciam pedagogia ou outra licenciatura desistem do curso, segundo o movimento Todos Pela Educação. Também não é a toa que o número de matrículas trancadas nesses cursos aumentou 36% nos últimos cinco anos, de acordo com o Inep. Mas a sociedade brasileira prefere “valorizar” o professor chamando-o de “herói”, e que ser professor é uma “missão”, um verdadeiro “sacerdócio”. Professor não é herói, missionário ou sacerdote. Professor é um profissional como outro qualquer (ou pelo menos deveria ser) que espera ser valorizado financeiramente e socialmente como qualquer outro profissional.
Quem sabe transformando todos os dias em dia do professor a realidade torne-se um pouco melhor para os profissionais da educação. Mesmo assim, o professor não tem motivos para sentir vergonha da sua profissão por que, nos países civilizados, ele seria levado a sério.

domingo, 8 de outubro de 2017

Paulo Sérgio: o rei que não vingou

Creio que todos nós já tivemos aquela sensação de déjà vu (do francês, “já visto”). Para quem não sabe é aquela sensação de que já esteve naquele lugar, já viu aquela pessoa ou já viveu aquela situação. Eu vivo isso todas as vezes que escuto duas músicas do cantor Paulo Sérgio (1944-1980), A última canção e Quero ver você feliz. É escuta-las e me lembrar das paisagens áridas do Cariri Paraibano, região onde meu pai nasceu, mas não me pergunte qual a relação entre uma coisa e outra que eu não saberia explicar.
Outra imagem recorrente ao ouvir essas músicas é a sala da casa dos meus pais antes de uma reforma que deu origem a uma garagem. Sempre me vejo com minha mãe vendo meus irmãos indo para a escola. Como sou o irmão mais novo, ainda não frequentava a escola. Mas eu não posso afirmar que isso realmente tenha acontecido. Pelo menos não lembro que tenha acontecido de fato. Por fim, as músicas me lembram de um programa que existia na rádio chamado ”Postal sonoro”, em que as pessoas pediam músicas e dedicavam á alguém que estava partindo para outra cidade ou para alguém que estava ficando.
Paulo Sérgio de Macedo nasceu no Espírito Santo e iniciou sua carreira em 1968, lançando um compacto com a música A última canção (a mesma que me causa o déjà vu), vendendo 60 mil cópias em apenas três semanas.  Tornou-se um grande sucesso e, de imediato, foi comparado com uma jovem estrela em ascensão três anos mais velho e com mais tempo de carreira, Roberto Carlos, então um ídolo da juventude. Ambos eram jovens, bonitos e tinham o mesmo timbre de voz. Não demorou para que os críticos dissessem que ele não passava de  um simples imitador do futuro rei. Isso o perseguiu por toda a sua curta carreira. Segundo alguns jornalistas que acompanhavam o mundo das celebridades da época, qualquer tipo de comparação com Roberto Carlos o deixava extremamente irritado.  
Em público sempre deixou bem claro que era fã de Roberto Carlos e que a semelhança no timbre de voz era mera coincidência. Os dois cantores galãs chegaram, inclusive, a dividir o mesmo palco num programa de Silvio Santos. Mas a imprensa da época afirma que o episódio que o teria levado à morte também tem, indiretamente, relação com a comparação que se fazia entre ambos. Na tarde do dia 27 de julho, um domingo, Paulo Sérgio fez uma apresentação no “Programa do Bolinha” e na saída houve um incidente com uma fã, que o teria agredido verbalmente e fisicamente, inclusive afirmando que Roberto Carlos era melhor que ele. Alguns afirmam que ele já chegou à TV Bandeirantes com muita dor de cabeça, estado agravado pela confusão.
No mesmo dia, à noite, depois de não conseguir terminar o show que estava fazendo em Itapecerica da Serra, Paulo Sérgio foi levado ao Hospital São Paulo, onde já chegou em coma. Morreria dois dias depois, aos 36 anos, vítima de um derrame cerebral.  Durante sua curta carreira, que duraria 13 anos, Paulo Sérgio vendeu mais de 10 milhões de cópias. 

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Porto Velho: 103 anos

O município de Porto Velho completa hoje 103 anos. No entanto, a data de 02 de outubro de 1914 marca apenas a criação oficial do município, que foi fundado, na realidade, em 1907 pela Madeira Mamoré Railway Company (M.M.R.C.), empresa responsável pela terceira tentativa de construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, pertencente ao magnata norte-americano Percival Farcquar. A origem está associada à vila de Santo Antônio do Rio Madeira, pertencente à província do Mato Grosso, situada 7 quilômetros do centro da cidade de Porto Velho, que foi, durante todo o primeiro ciclo da borracha (1879-1912), o porto por onde era escoada a produção de borracha vinda da Bolívia e que se destinava aos mercados dos Estados Unidos e da Europa.
A história da pequena vila construída pela M.M.R.C para abrigar seus funcionários, e que daria origem á cidade de Porto Velho, é contada de forma magistral pelo professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) Dante Ribeiro da Fonseca em Uma cidade à far-west: tradição e modernidade na origem de Porto Velho, escrito com base nos relatos de viajantes que passaram pela vila, entre eles o sanitarista Osvaldo Cruz. O artigo está no livro Estudos da História da Amazônia (Volume I) e abrange o período de 1907 a 1914, ou seja, da construção da vila pela Companhia até a criação oficial do município. Um texto tão bem escrito que o leitor se sente na Porto Velho da época.
Segundo professor Dante, quando a M.M.R.C. chega na Vila de Santo Antônio encontra um cenário pouco convidativo para quem pensava em construir um ambiente de acordo com a “legítima tradição segregacionista anglo-saxônica”, um asséptico estabelecimento industrial. A vila de Santo Antônio era um pequeno aglomerado de pessoas (não mais do que 300 pessoas, a maioria indígenas bolivianos que vivia da carga e descarga dos navios que atracavam no pequeno porto da vila), sem esgoto, água canalizada ou iluminação, com casas de alvenaria ou taperas de bambu cobertas com palha, além dos estabelecimentos comerciais voltados ao lazer dos viajantes: mulher, jogo e bebida.
Alegando insalubridade da vila e problemas com o porto (pode colocar na conta também a presença de bares e prostíbulos), a M.M.R.C. decide iniciar o empreendimento em outro ponto, 7 quilômetros rio abaixo, onde hoje é a praça da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Para isso, construiu uma vila para seus funcionários, com abastecimento de água, luz e esgoto sanitário. A pequena vila era dotada até de hospital, um “luxo” que os moradores da Vila de Santo Antônio nem sonhavam. Mas era imposto aos moradores um rígido controle social, com a proibição de bebidas alcoólicas e a prostituição e um corpo policial próprio controlava a entrada de embarcações no porto. Só entrava na vila quem tinha autorização da companhia. Além do controle sobre o porto, foi erguida uma cerca na Avenida Divisória (onde hoje é a Avenida Presidente Dutra) para evitar a entrada de quem não era funcionário da M.M.R.C.
Os moradores da pequena Vila de Santo Antônio do Rio Madeira, vendo o povoado cheio de gringos (e dólares) surgir a apenas 7 quilômetros de distância, não hesitaram em erigir suas casas e seus comércios do outro lado da cerca,  dando origem à duas Porto Velho: uma organizada e planejada, com casas teladas, espaçosas e arejadas; outra insalubre e desorganizada, com casas de alvenaria ou adobe cobertas com zinco ou palha. Essa era a realidade de Porto velho no dia 02 de outubro de 1914, quando foi criado o município através da Lei nº 757 sancionada pelo governador do Amazonas Jonatas Pedrosa. Em dezembro do mesmo ano chega à Porto Velho seu primeiro superintendente (prefeito), o major do exército Fernando Guapindaia de Souza, que que irá administrar uma cidade dividida ao meio por uma cerca. Essa divisão permaneceu até 1931, com a nacionalização da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e a nomeação, pelo presidente Getúlio Vargas, do primeiro diretor brasileiro da companhia, o tenente Aluízio Ferreira.     

domingo, 24 de setembro de 2017

Júlio Barroso: assim começa a Geração 80

Quando falamos da Geração do rock dos anos 80, os nomes que surgem são o da Legião Urbana, Titãs, Capital Inicial, Lobão, Kid Abelha e mais alguns poucos. Quem gostar muito daquele período especialmente fértil da música brasileira vai lembrar artistas que fizeram sucesso naquela época, mas desapareceram nos anos seguintes, como Zero, Metrô, Blitz, Rádio Táxi, Sempre Livre, Hanói Hanói, entre muitas outras. Mas quase ninguém lembra daqueles que contribuíram de forma decisiva para que essa fase, que é considerada por muitos como a mais fértil da música brasileira, acontecesse. Entre os que não são lembrados pelo público está o jornalista, cantor, guitarrista, compositor e DJ Júlio Barroso.
Nascido no Rio de Janeiro em 1953, de família rica, radicou-se em São Paulo ainda adolescente. No anos 70 foi editor da revista Música do Planeta Terra, com a colaboração de nomes como Caetano Veloso e Gilberto Gil; participou da revista Som três, com entrevistas  e uma coluna chamada “Toda taba ateia som”; e foi disc-jóquei (o que hoje é chamado de DJ) em várias casas noturnas em São Paulo, dentre elas a Dancin’ Days, do jornalista, compositor e escritor Nelson Motta. Em 1981, junto com a sua banda recém-formada Gang 90 e as Absurdettes, participa do Festival MPB-Shell, promovido pela Rede Globo, com a música Perdidos na selva, uma parceria com Guilherme Arantes.  
Para montar a banda Gang 90 e as Absurdettes, se inspirou nas bandas que curtia, como Talking Heads e B-52’s. era uma banda meio anárquica com três banking vocals desafinadas e um vocalista (ele próprio) que não cantava nada. Mas deu certo!  Alias, nos anos 80 tudo dava certo. Pelo menos por um tempo. Em 1982, Júlio viaja aos Estados Unidos e toma contato com artistas do movimento New Wave. Na volta ao Brasil, no ano seguinte, coloca toda a sua experiência norte-americana no primeiro disco da banda, Essa tal de Gang 90 & As Absurdettes, com músicas que fizeram grande sucesso, como Nosso louco amor (foi tema da novela das 8 Louco Amor, de Gilberto Braga), Telefone e a já conhecida Perdidos na selva. No mesmo ano participam de um especial da TV Globo, Plunct, Plact, Zuuum.
Júlio Barroso, que sonhara em “ficar velhinho fazendo música”, não teve tempo de lançar o segundo disco da banda. Em 6 de junho de 1984, aos 30 anos e enfrentando sérios problemas com drogas e álcool, morreu ao cair do 11º andar do prédio onde morava. A hipótese de acidente é a mais aceitável. Segundo Lobão, grande amigo de Júlio Barroso, suicídio ”não era a dele”. Ao lado da Blitz, de Evandro Mesquita, a Gang 90 foi pioneira do Rock dos anos 80, adotando uma atitude pop em um mercado então dominado pela MPB e colocando uma geração de músicos, até então na marginalidade, na programação das rádios e das TV’s brasileiras.

Para quem convivia com o músico, ele era a contradição em pessoa. O seu visual nerd escondia um artista rebelde e cheio de atitudes que não hesitou em colocar suas músicas na programação da Rede Globo, vista pela sua geração como a vilã que apoiou a Ditadura Militar e era uma emissora elitista. Para mostrar essas contradições, que fez dele um artista ousado e hoje cultuado pelos amantes daquela geração (mas esquecido por muitos) foi lançado em 2013 o documentário JúlioBarroso: marginal conservador, dirigido por Ricardo Alexandre. Como bem disse um dos herdeiros das contradições de Júlio Barroso, “É tão estranho/ os bons morrem jovens”.     

domingo, 17 de setembro de 2017

Caetano, Torquato e “Cajuína”

A canção Cajuína, composta por Caetano Veloso nos anos 70 e incluída no disco Cinema Transcendental, é considerada pelos piauienses como um segundo hino de Teresina, capital do estado. Talvez por causa do último verso da música (“A cajuína cristalina em Teresina”). No entanto, a história da música não é uma homenagem à Teresina, mas ao jornalista, poeta e letrista piauiense (e amigo de Caetano) Torquato Neto, que se matou em 1972, aos 28 anos, no Rio de Janeiro, onde vivia com a mulher e o filho.  
"A alegria é a prova dos nove
E a tristeza é teu Porto Seguro
Minha terra é onde o Sol é mais limpo
Em Mangueira é onde o Samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem
Pindorama, país do futuro”
(Geleia Geral, Torquato Neto e Gilberto Gil)
Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu na capital piauiense e, depois de passar a adolescência em Salvador, foi morar no Rio de Janeiro, onde trabalhou em jornais assinando colunas de crítica musical. Entre suas primeiras letras está Louvação, em co-autoria com Gilberto Gil, lançada por Elis Regina. Quando estourou o Tropicalismo, um movimento de ruptura da cultura brasileira, em 1967, Torquato Neto se tornou seu principal letrista, escrevendo inclusive a letra da canção-manifesto, Geleia geral, e de outras canções, como Marginália 2, Mamãe coragem e Deus vos salve esta casa santa, em parcerias com Gilberto Gil e Caetano Veloso.
Além do tropicalismo, Torquato, na condição de agente cultural e polemista (já que nunca concluíra o curso de jornalismo) defendia o cinema marginal e a poesia concreta. Há dez dias da publicação do AI-5, em 03 de dezembro de 1968, com os principais parceiros presos ou no exílio, embarcou para Londres na companhia da mulher. Na Europa, mantém contato com artistas e intelectuais brasileiros no exílio e estrangeiros. Apesar do receio com o endurecimento do regime aqui no Brasil, retorna em dezembro de 1969. 
No retorno ao Brasil, fez escreveu músicas para novelas da Globo em parceria com Roberto Menescal e Nonato Buzar e  participou como ator em filmes do cineasta Ivan Ângelo.   Mas fazer trabalhos comerciais não o deixava feliz. Começou um processo de isolamento, consequência não apenas do seu histórico de depressão e alcoolismo, mas também por se sentir alienado pelo Regime Militar. Numa carta de abril de 1971 ao artista plástico Hélio Oiticica, outro grande nome do Tropicalismo, Torquato desabafa: "O chato, Hélio, aqui, é que ninguém mais tem opinião sobre coisa alguma”. E completa: “Depois que cheguei no Rio, tive de sair por aí feito maluco atrás de alguma coisa pra fazer, e logo em seguida tive de fazer essas coisas: produção de discos de novela pra Globo, música para novela, músicas para vender e garantir qualquer dinheiro - enfim, um negócio chato e cansativíssimo que eu tinha de fazer”. Ainda em 1971, escreveu o poema Go Back, que se popularizou depois que foi musicado por Sérgio Brito e incluído no disco Titãs, da banda homônima, em 1984.
Você me chama
Eu quero ir pro cinema
Você reclama
Meu coração não contenta
Você me ama
Mas de repente
A madrugada mudou
E certamente
Aquele trem já passou
E se passou, passou
Daqui pra melhor, foi
Só quero saber do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder
(Go Back – Torquato Neto)
Entre agosto de 1971 e março de 1972, assinou coluna diária Geleia Geral, no jornal Última Hora, um espaço iconoclasta e de resistência que abordava temas do dia a dia, música, televisão, teatro, cinema. Nela, Torquato fez duras críticas à censura, ao moralismo da classe média, à indústria fonográfica, aos festivais de moda e ao Cinema Novo, que para ele estava se vendendo ao governo ao receber verbas oficiais. Ainda em 1972, Torquato, em parceria com Waly Salomão, lançou o primeiro e único número da revista Navilouca, com trabalhos de vários nomes do cenário underground da época. Torquato Neto, em depressão profunda, se matou na madrugada de 10 de novembro de 1972.
Quando recebeu a notícia da morte do amigo, Caetano não chorou. “Senti uma dureza de ânimo dentro de mim. Me senti um tanto amargo e triste mas pouco sentimental”, relembrou Caetano. Em 1973 (a data não é exata, nem o próprio Caetano tem certeza quando foi), Caetano Veloso estava em Teresina para fazer um show e recebeu a visita no hotel de seu Heli, pai de Torquato. Na casa da família, numa sala repleta de fotos do filho recém-falecido, seu Heli tentava consolar um inconsolável Caetano. Naquele momento, a sua “dureza amarga se desfez”, como ele mesmo diz. Seu Heli serviu-lhe cajuína para acalma-lo e pegou no jardim uma Rosa-Menina. A cada gesto do pai do amigo, Caetano se desmanchava em lágrimas ainda mais. Depois do show, em outra cidade, nasceram os versos de Cajuína, que você lê abaixo:

Cajuína
Existirmos - a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos, intacta retina:
A cajuína cristalina em Teresina

domingo, 10 de setembro de 2017

Paulo Leminski e a Poesia Marginal

Toda arte tem que ser transgressora. Se não transgride, não transforma, não cumpre integralmente seu papel de indagar, questionar e transformar. A Poesia Marginal, ou Geração Mimeógrafo, surgiu nos anos 70 para burlar a censura imposta pela Ditadura Militar aos movimentos culturais da época. Intelectuais, professores universitários, agitadores culturais, poetas e artistas em geral, inspirados nos movimentos de contracultura, buscaram burlar a censura criando novos meios de divulgação da arte e da cultura brasileira (música, cinema, teatro, artes plásticas).  
"O Paulo Leminski / é um cachorro louco / que deve ser morto / a pau a pedra / a fogo a pique / senão é bem capaz / o filhadaputa / de fazer chover / em nosso piquenique".
Uma das vertentes desse movimento sociocultural e artístico é a poesia marginal, contrária a qualquer modelo literário, não se encaixando em nenhuma escola ou tradição literária. Dentre esses poetas de linguagem espontânea, coloquial e sarcástica, se destaca Paulo Leminski, um curitibano filho de pai de origem polonesa e mãe de origem negra, que teria feito 73 anos no ultimo dia 24 de agosto. Dono de uma personalidade singular, encarnou o que havia de mais original na Geração Mimeógrafo: o inconformismo e a rebeldia. Poeta, romancista, tradutor e crítico literário, Leminski ganhava a vida como professor de História em cursinhos de pré-vestibular.
“Nunca cometo o mesmo erro / duas vezes / já cometo duas três / quatro cinco seis / até esse erro aprender / que só o erro tem vez”

Estreou na poesia em 1964, aos 20 anos, com cinco poemas na revista Invenção, dirigida por Décio Pignatari. Desde então, passou a produzir compulsivamente poemas, haicai, ensaios e, nos anos 80, arriscou-se como letrista, compondo Verdura, de 1981, gravada por Caetano Veloso (De repente/Vendi meus filhos/A uma família americana/Eles têm carro/Eles têm grana/Eles têm casa/A grama é bacana/Só assim eles podem voltar/E pegar um sol em Copacabana), além de músicas para Paulinho da Viola, A Cor do Som e Paulinho Boca de Cantor. Fluente em seis idiomas (inglês, francês, latim, grego, japonês, espanhol), entre os anos de 1984 e 1986 traduziu obras de John fante, John Lennon e Samuel Beckett.  Paulo Leminski Filho morreu em 07 de junho de 1989, aos 44 anos, de cirrose hepática. 

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Johnny vai à guerra – Dalton Trumbo

“Então como é que um sujeito podia perder os braços e as pernas e os ouvidos e os olhos e o nariz e a boca e ainda continuar vivo? Que sentido podia fazer uma coisa dessas?”
Tomei conhecimento da existência de Dalton Trumbo quando achei a sua biografia, Trumbo: a vida do roteirista e ganhador do Oscar que derrubou a lista negra de Hollywood, do jornalista Bruce Cook, sobre a qual já falei aqui, por um preço baratinho. Minha ignorância tem uma explicação: Dalton Trumbo era mais roteirista do que romancista, seus maiores sucessos aconteceram no cinema, como o roteiro de Papillon, de 1973, e quem me conhece sabe que sou mais adepto da sexta arte. E foi lendo a biografia do homem que se recusou a delatar seus colegas de Hollywood (e foi condenado por isso) que soube de Johnny vai à guerra, seu romance pacifista de 1939, inspirado num artigo que Trumbo leu sobre um soldado que voltava da guerra desfigurado.
“Quatro ou talvez cinco milhões de pessoas mortas e nenhuma delas desejando morrer enquanto centenas talvez milhões resultavam loucas ou cegas ou aleijadas e não conseguiam morrer por mais que tentassem com afinco”.  
O livro é narrado por Joe Bonham, um jovem que levava uma vida banal nos Estados Unidos: tinha uma namorada, um trabalho e rusgas constantes com os pais. Até que Joe foi recrutado para a guerra. Muitos perdem a vida na guerra, outros são mutilados. Joe volta da guerra numa situação pior do que a maioria dos ex-combatentes. Perdeu tanto a vida quanto o direito de morrer. Atingido por uma explosão, perde braços, pernas e tem o rosto completamente destruído, a ponto de ficar sem visão, audição e fala. Mas não sofre nenhum dano cerebral, ficando preso a uma cama de hospital e ao seu corpo dilacerado. A partir daí o leitor viaja nas memórias de Joe e em sua obsessão em se comunicar com um mundo exterior que não sabia nem identificar a sua nacionalidade.
“Que raio lhe interessa sua pátria depois que você está morto? É terra natal de quem quando você já morreu?”

O livro foi lançado num momento especialmente delicado, quando tinha início a Segunda Guerra Mundial e os Estados Unidos teriam que recrutar milhares de jovens para as Forças Armadas. Em 1943, pressionado pela imprensa e pelo Governo, Trumbo e seus editores decidem suspender a reimpressão da obra. Chocante por mostrar a violência da guerra (de qualquer guerra) por um novo ângulo, o livro se revela um verdadeiro soco no estômago. Em 1971 foi transformado num filme homônimo e, pela primeira e única vez, Trumbo ocupou a cadeira de diretor. O livro também foi inspiração para a música One, da banda Metallica.     

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Contos novos – Mário de Andrade

“Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, por que eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada”.
Além de ter uma vasta produção literária, com mais de duas dezenas de livros publicados ainda em vida, Mário de Andrade foi polígrafo, ou seja, escreveu poesia, romance, crônica e conto. Sem contar que foi um dos líderes do movimento modernista brasileiro que aplicou novos princípios estéticos à arte brasileira a partir das vanguardas europeias e um projeto de cultura genuinamente nacional. Contos novos é um livro póstumo, publicado em 1947 (o escritor morreu em 1945), que reúne nove contos escritor na maturidade artística do autor. Contos escritos e reescritos, já que Mário era um perfeccionista quando o assunto era a língua portuguesa. E como ele não era de guardar rascunhos, as várias edições dessa obra foram tentando se aproximar da verdadeira linguagem de Mário, um obcecado pelo português falado nos rincões do país.
Dos nove contos, quatro são narrados em primeira pessoa (Vestida de preto, O peru de Natal, Frederico paciência e Tempo de camisolinha) e tem como traço comum o fato de ser narrado pelo mesmo personagem, Juca, cuja personalidade é moldada a partir das suas experiências de rejeição e repressão. No ultimo caso, destaca-se a figura paterna, presente nos contos Tempo de camisolinha, quando Juca é obrigado a cortar o cabelo e perde os cachos de que tanto gostava (alegoria da castração); e Peru de Natal, quando a família aproveita o primeiro Natal após a morte do patriarca, que era avesso a festas, para fazer uma celebração.

Os outros cinco contos são narrados em terceira pessoa e deles se sobressaem duas imagens: a solidão e solidariedade. Em Nelson, o personagem misterioso sentado num bar não tem uma história precisa, mas apenas boatos. Em O ladrão, o alarde da presença de um fora da lei leva os moradores da rua para fora das suas casas durante a noite. Depois da revelação de várias histórias paralelas e sem encontrar o ladrão, todos retornam para a solidão dos seus lares. Por fim, mais solitária do que Mademoiselle é impossível. Quarentona e virgem, trabalha como dama de companhia de meninas ricas que certa vez lhes contam a história de um homem em atitude suspeita atrás da catedral francesa de Ruão. Perturbada mas cheia de desejos, mademoiselle passa a fazer com que todos os seus trajetos passem por traz das igrejas de São Paulo.    

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Casados com Paris – Paula McLain

“Grilhões e amarras não eram a fórmula para prender um homem como Ernest – se é que havia alguma”.
Mais uma vez vemos aqui aquela velha história do livro que é comprado por que estava barato (R$ 5,00) e nos surpreende. Casados com Paris foi achado perdido numa prateleira e, além do preço convidativo, a menção ao nome de Ernest Hemingway chamou a atenção. Ernest e Hadley se conhecem em Chicago nos anos 20. Ela é sete anos mais velha e sonha em ser feliz, já que se aproximava dos trinta anos e nunca vivera um grande amor. Ele sonha em ser escritor e viver da escrita. Em Casados em Paris, publicado em 2011, a escritora norte-americana Paula McLain utiliza-se de uma pesquisa rigorosa para escrever uma “biografia fictícia” da primeira esposa do escritor Ernest Hemingway, Hadley Richardson.
“Eu não confio num homem que nunca vi embriagado”.
Por causa da doença da mãe, Hadley tinha vivido até os 28 anos numa espécie de casulo. Com a morte da senhora Richardson, resolve passear em Chicago e, através da sua amiga Kate, conhece Ernest, então um belo e impetuoso jovem de 21 anos. Ao retornar para casa, continuam se relacionando por cartas, até engatarem um relacionamento e casarem. A princípio, o jovem casal vai morar num pequeno apartamento em Chicago, mas o sonho de Ernest de mudar para Paris e viver da escrita nunca foi esquecido. Ainda nos anos 20, o casal se muda para a Cidade Luz, onde trava conhecimento com grandes nomes das artes, como Gertrude Stein, Scott e Zelda Fitzgerald, Ezra Pound, entre outros. A famosa Geração Perdida!!
“Os muito ricos só admiram a si mesmos”.

Em Paris, travamos conhecimento com um Hemingway extremamente egoísta, que só pensava em concretizar seus sonhos na literatura; e uma Hadley muito submissa, que abria mão dos seus sonhos para sonhar os sonhos do marido. O nascimento da filha veio abrir um abismo entre os dois, com Hemingway se afastando de ambas sob a alegação de que precisava de silêncio e concentração para escrever. Narrado em primeira pessoa, ao contar a própria história, Hadley nos coloca a par não apenas da intimidade do escritor Ernest Hemingway, mas também das histórias de toda uma geração de gênios da arte, que erroneamente foram chamados de “Geração Perdida”.  

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

A resistência – Julián Fuks

Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado.
Com apenas dois romances publicados (o anterior, Procura do romance, é de 2011), o escritor e crítico literário Julián Fuks é um dos mais promissores autores da atual literatura brasileira. A Resistência, seu segundo romance, publicado em 2015, caminha no limite entre a realidade e a ficção; a história e a memória; o biográfico e o ficcional; entre Julián, o autor, e Sebastián, protagonista do livro. Filho de pais argentinos que se exilaram no Brasil fugindo da ditadura portenha, Fuks usa a obra para explicitar a sua obsessão com origens.
“Que força tem o silêncio quando se estende muito além do incômodo imediato, muito além da mágoa”. 
 Narrado em primeira pessoa por Sebastián, o mais novo de três irmãos de um casal de psiquiatras argentinos que se conheceram na universidade, o livro narra a história da família que veio fugida para o Brasil. Dos três filhos, o mais velho é adotado e avesso à vida familiar; o segundo, nascido no Brasil, permitiu a cidadania aos exiliados; e o mais novo, narrador dos dilemas de uma família que vive num país que não é o seu e tem um filho que não é seu (pelo menos não biologicamente). Mas esse não é o grande dilema da narração, mas se o fato de ser adotado deve ser explicitado ou não. Aliás, a frase que inicia o livro expressa esse dilema.
“Um filho nunca será o mais indicado para estimar a relação entre os pais, para compreender o que atraiu um ao outro, para destrinchar seus sentimentos”.

Fuks adota uma estratégia narrativa muito parecida com a utilizada por Chico Buarque de Holanda em Irmão alemão, romance de 2014. Nele, Ciccio é e não é Chico. Aqui Sabastán é e não é Julián. Um dos grandes méritos do autor é narrar com uma precisão assustadora os sentimentos familiares, sensações nem sempre fáceis de expressar em palavras por envolver múltiplos sentimentos. Tributo à Emi, irmão adotivo de Fuks, o livro usa como cenário a ditadura argentina e a vida de todos aqueles que foram atingidos por ela para reconstruir a sua história familiar e dá um significado aos desdobramentos emocionais da adoção. 

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Um defeito de cor – Ana Maria Gonçalves

“Não nos davam comida todos os dias, e me acostumei a isso”.
Tomei conhecimento da existência de Um defeito de cor por acaso, num programa de televisão, quando o ator Lázaro Ramos falou sobre ele. E foi sem muitas expectativas que resolvi ler o calhamaço de quase 950 páginas durante as férias. Logo no prólogo fiquei sabendo pela autora, a publicitária mineira Ana Maria Gonçalves, que também foi o acaso que a levou a escrevê-lo. Aquilo que ela chama de serendipty (palavra inglesa que pode significar uma descoberta afortunada ou o acaso) fez com que uma pilha de livros despencasse na sua cabeça numa livraria e ele só conseguisse segurar um, Bahia de Todos os Santos – Guias de ruas e mistérios, de Jorge Amado. Insatisfeita com a profissão de publicitária, cansada da cidade grande e recém-separada, Ana Maria interpretou aquele episódio como uma proposta de uma nova atividade. Dali em diante, passou a se programar para se mudar para a Bahia.
“Em terra do Brasil, eles (os escravos) tanto deveriam usar os nomes novos, de brancos, como louvar os deuses dos brancos, o que eu me negava a aceitar, pois tinha ouvido os conselhos da minha avó”.
Um ano depois, lá estava ela morando na Ilha de Itaparica, onde outra serendipidade vai coloca-la em contato com dona Clara, uma senhora que trabalhava numa igreja na ilha. Na casa dessa senhora, Ana Maria descobriu documentos escritos em português arcaico que estavam sendo usados como rascunhos pelo filho mais novo. Esses documentos teriam sido retirados da Igreja do Sacramento, com a autorização do padre, para serem jogados no lixo junto com revistas velhas. Antes de pôr fogo em tudo, dona Clara lembrou que seu filho mais novo vivia procurando papeis para desenhar e levou para casa. Nesses papéis danificados pelo tempo e pelo manuseio equivocado havia referencias à história dos malês, negros escravos seguidores da religião Islâmica. Defeito de cor, publicado em 2006, é fruto do que está escrito nesses documentos. A autora inventou apenas as partes ilegíveis ou que se extraviaram. Segundo ela, foram cinco anos de trabalho, dois dos quais reescrevendo dezenove vezes o texto, com redução de quinhentas páginas.
“Na minha convivência com brancos e mulatos, vi que nem todos eram maus, que existiam os de bom coração e até mesmo os que eram contra a escravatura, mas não haveria como separar uns dos outros”.
São várias histórias tendo como fio condutor a narrativa der uma mulher chamada Kehinde, conhecida também como Luísa, seu “nome de branco”, uma escrava negra que foi raptada aos oito anos na África e mandada para o Brasil junto com a irmã gêmea e a avó de ambas. Na verdade, trata-se de Luísa Mahin, mãe do poeta abolicionista Luís Gama, vendido como escravo pelo seu pai português aos 10 anos de idade. Nos cerca de trinta anos que permaneceu no Brasil, Kehinde foi preta de companhia na Casa-Grande, trabalhadora de eito, escrava de ganho, viveu “porta à dentro” com um português (o pai de Luís Gama), conspiradora rebelde e uma negra bem sucedida vendendo guloseimas inglesas nas ruas de São Salvador. Através da narrativa de Kehinde é possível conhecer a vida dos escravos a bordo dos navios tumbeiros que atravessavam o Atlântico abarrotados de negros que seriam vendidos no Brasil; a vida nas lavouras e na Casa-Grande nos engenhos de açúcar espalhados pelo Brasil; como os negros se organizavam para resistir às condições degradantes da escravidão.
“Por que será que tenho pelo menos um arrependimento em relação a cada um dos meus filhos? Arrependimentos por falta ou por excesso de zelo, mas nunca por falta de bem querer, e é isso o que me consola”.

Em suma, Kehinde expõe ao leitor todos os aspectos políticos, econômicos, sociais e religiosos do Brasil, incluindo a espiritualidade afro-brasileira, e da África do século XIX. Já madura, resolve retornar à África, onde se junta com um mulato de origem inglesa, John, com quem tem filhos gêmeos. Lá, descobre que os ex-escravos que voltaram para a África, os retornados, formaram uma espécie de classe média que se acha superior aos que nunca saíram do continente africano. Ao lado do companheiro, Kehinde faz fortuna explorando vários setores da economia africana, do comércio à construção civil. Depois de enviuvar e já octogenária, resolve retornar ao Brasil na esperança de reencontrar o filho desaparecido a anos e contar todos os seus segredos. Kahinde nos deixa inúmeras lições durante a sua saga marcada pelo sofrimento, mas a principal delas é a de que a felicidade pode estar na próxima curva. Um livro que nasceu para ser clássico.  

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída – Kai Hermann/Horst Rieck

“Todas as noites eu perguntava a meu pai, com muito jeito, se ele iria sair. Ele saía com frequência, e nós, as três mulheres, respirávamos aliviadas. Essas noites eram maravilhosamente tranquilas.”
No início de 1978, Christiane Vera Felscherinow, então com 15 anos, depunha em um tribunal de Berlim como testemunha em um processo por tráfico de drogas quando os jornalistas Kai Hermann e Horst Rieck (na época trabalhando na revista Stern) viram naquela garota franzina, frágil e delicada uma personagem interessante a ser entrevistada para o trabalho de pesquisa sobre os problemas da adolescência que estavam realizando.  Era para ser uma entrevista de, no máximo, duas horas. Durou dois meses e deu origem a Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída, publicado ainda em 1978 e transformado em best-seller imediatamente.
“É a grande diferença entre os drogados e os alcoólatras. A maioria dos drogados é sensível aos sentimentos dos outros, pelo menos quando se trata de um dos membros da turma”. 
Apesar de ter sido escrito a partir do depoimento de Christiane, o livro ganhou um ar de diário, colocando os autores em segundo plano (o que é um mérito) e comovendo os leitores por sua contundente honestidade e crueza. Segundo seus relatos, começou a fumar maconha e haxixe e consumir medicamentos como Valium e Mandrix aos 12 anos, em 1974. No seguinte, frequentando a discoteca Sound, point de viciados em Berlim, conheceu Detlev, seu namorado, e começou a consumir heroína. Necessitando da droga pelo menos três vezes ao dia, Christiane é obrigada a se prostituir na Estação Zoo para sustentar o vício.
“A maioria dos jovens passa sozinho para a heroína, quando está maduro para isso. E eu estava...”. 

Na época, o consumo de drogas pesadas entre jovens transformou-se num problema de saúde pública na Alemanha. Quase todos os colegas de Christiane morreram de overdose de heroína, entre elas Babsi, sua melhor amiga que, aos 14 anos, foi a vítima mais jovem da heroína. Christiane, mesmo não tendo o mesmo destino, foi uma vítima da droga pelo resto da vida. Após várias internações, em 1978 se diz livre das drogas, mas em 1983 é presa no apartamento de um traficante. E em várias outras ocasiões teve recaídas, inclusive perdendo a guarda do seu filho, hoje maior de idade. Recentemente publicou sua autobiografia Eu, Christiane F. – Minha segunda vida. Traduzido para 15 idiomas, Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída foi transformado em filme em 1981.  

quarta-feira, 12 de julho de 2017

O diário de Anne Frank

“Preocupada com a ideia de ir para um esconderijo, juntei as coisas mais malucas na pasta, mas não me arrependo. Para mim, lembranças são mais importantes do que os vestidos”.
Anne Frank era uma menina judia alemã de 13 anos que vivia com a família em Amsterdã, na Holanda. Quando o exército nazista invade o país, a família é obrigada a se esconder para não ser enviada para campos de concentração. O período em que a família fica confinada no anexo secreto no sótão da empresa do pai de Anne, de julho de 1942 a agosto de 1944, foi registrado pela adolescente em seu diário, publicado pela primeira vez em 1947, pelo seu pai, Otto Frank, único sobrevivente.  Desde então, O diário de Anne Frank se tornou um best-seller, traduzido para mais de 50 idiomas e adaptado para TV, cinema e teatro.
“Acho estranho os adultos discutirem tão facilmente e com tanta frequência sobre coisas tão mesquinhas”.
Além de ser a mais famosa história pessoal do Holocausto, O diário de Anne Frank é também o único relato de alguém que não sobreviveu à perseguição nazista. Normalmente, os relatos são de pessoas que sobreviveram para contar seus infortúnios. Mas o livro também é o relato dos dramas de uma adolescente que passou mais de dois anos confinada num espaço exíguo com outras oito pessoas, seus conflitos internos e com os outros habitantes do sótão, sua solidão e frustrações. Lendo o relato, observa-se menos uma heroína e mais uma jovem recém-saída da infância que tem seus sonhos frustrados e seus desejos roubados por uma guerra insana.
“Excelentes espécimes da humanidade, esses alemães, e pensar que na verdade sou um deles!”
Mas nem só de glórias vive o livro. São muitas as polemicas em torno do best-seller. A maior delas seria que o livro não teria sido escrito por Anne. Nos anos 50, o escritor Meyer Levin moveu uma ação contra Otto reclamando os direitos de autor do diário e a falta de pagamento pelo trabalho. Ganhou a ação e levou 50 mil dólares de indenização. Pego na mentira, Otto afirmou que não revelou os originais, apenas as transcrições feitas por Levin, por que Anne fazia duras críticas à mãe e revelava detalhes íntimos de sua relação com o jovem Peter, também confinado no anexo. Em 2007, o diário foi considerado autêntico. 
“Eu me agarro a papai porque meu desprezo por mamãe cresce dia a dia, e só por intermédio dele consigo manter o pouquinho de sentimento familiar que ainda trago dentro de mim”. 

Sendo verdadeiro ou não, O diário de Anne Frank é hoje o maior sucesso editorial do mundo, com vendas estimadas em 35 milhões de exemplares. Claro que com esses números, Anne Frank e tudo relacionado a ela virou um filão valioso. O local onde ficou escondida virou museu e as filas de visitantes se entendem diariamente das oito da manhã às nove da noite; várias versões do livro foram lançadas, até chegar a uma “definitiva” recentemente; biografias da adolescente escritas por quem conviveu com pessoas que conviveram com ela enchem as livrarias; sem contar as adaptações para cinema, teatro e TV. 

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Memórias de uma beatnik – Diane de Prima

“O que não é bom, o que é claustrofóbico e embotador, é o relacionamento normal entre duas pessoas”.
Sempre associamos a Geração Beat à nomes como William Burroughs, Allen Gisnberg e, principalmente, Jack Kerouac. São poucas as mulheres que aparecem nas inúmeras narrativas do período e, quando aparecem, são coadjuvantes, assumindo o papel de mães, companheiras ou amantes.  Até mesmo numa das mais famosas biografias de Jack kerouac, a do escritor britânico Barry Miles, já resenhada aqui, o papel feminino no movimento é pífio. Ao ler Memórias de uma beatnik, da escritora Diane di Prima, percebe-se que elas estavam presentes sim e não apenas em papéis secundários.
“O dinheiro que eu recebia por duas horas de trabalho como modelo era o suficiente para o jantar e o café da manhã seguinte, e para lavar e secar mais uma troca de roupa. E, como não tinha outras necessidades, eu me considerava bem rica”.
Escrito sob encomenda do editor Maurice Girondias no final dos anos 60, o livro só foi publicado no Brasil em 2013 e narra a convivência de uma adolescente (di Prima nasceu em 1934) com a boemia nova-iorquina nos anos 40 e 50. O Movimento Beat se notabilizou por questionar o que os jovens da época chamavam de “valores burgueses” e inspiraria o movimento hippie. Entre os “valores burgueses” questionados está a monogamia: “Viva com um único homem e você passa a ter uma reclamação contra ele. Viva com cinco, e você tem a mesma reclamação, mas ela é difusa, ambígua, indefinida”.  Em um caleidoscópio de sexo e drogas, Diane mostra como jovens transformava uma vida desregrada em arte.  
“Eu ficava com todas as fibras do corpo estremecendo e gritava na manhã calma, enquanto gozava de novo em um espasmo sem fim de liberação que me deixava oca, côncava e vazia, uma luz branca como um relâmpago explodindo em meu cérebro”.

Mas onde fica nessa narrativa a santíssima trindade do Movimento Beat? Kerouac, Burroughs e Ginsberg? Eles só aparecem nas últimas quinze páginas do livro, quando a autora narra a ocasião em que participou de uma orgia com os três e mais alguns outros personagens. O livro peca por não se aprofundar nas obras e nos autores Beats, ou até mesmo em mostrar a convivência literária da autora com outros nomes do movimento. O livro nada mais é do que uma sucessão de cenas de sexo e consumo desenfreado de drogas, o que era uma realidade na época, mas não a única realidade.        

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Doutor Jivago – Boris Pasternak

“Todo espírito de rebanho é refúgio para quem não tem talento”.
Escrito em sua maior parte nas décadas de 1910 e 1920, Doutor Jivago, do escritor russo Boris Pasternak, só foi concluído em 1956. Proibido na União Soviética por rejeitar, segundo os editores do país, os pilares do realismo socialista, o livro só foi publicado em 1957 na Itália. Para os censores soviéticos, o personagem que dá título ao livro, o poeta e médico Iúri Andreievitch Jivago, demonstra mais preocupação com os indivíduos do que com a coletividade. Com a proibição em território soviético, o livro tornou-se um sucesso no ocidente, sendo traduzido para dezoito idiomas e recebendo uma adaptação cinematográfica em 1965.
Tendo como pano de fundo a Revolução Russa de 1917, a obra conta a história do médico Iuri Jivago, um jovem descendente de uma família renomada e falida, que se cruza com a história da jovem Larissa Fiodorovna, ou Lara, de família muito pobre e que se vê envolvida nas investidas sexuais do amante da mãe. A vida de ambos é repleta de encontros e desencontros. Os dois se conhecem jovens, mas nunca se falaram, e suas vidas tomam rumos diferentes, casam e têm filhos até se reencontrarem por acaso durante a Guerra e serem finalmente apresentados. Claro que, em se tratando de um romance russo, há muitos mais personagens além do casal.
Talvez isso, mais a quantidade de lugares e a variação de nomes para a mesma pessoa (depende do grau de intimidade de quem está falando com o personagem) torna o livro cansativo. Para se sincero, o livro chato com louvor! Alias, Doutor Jivago faz jus à péssima (e injusta) fama que os clássicos são chatos. E não estou sozinho nessa! Alguns críticos literários afirmam que o romance não tem “nenhum verdadeiro enredo” e que “a sua cronologia é confusa”.  Vladimir Nabokov afirmava que a obra era "uma coisa pobre, desajeitada, banal e melodramática”. Mas ganhou o Nobel de Literatura em 1958. Como explicar? Somente a política internacional da época explica.  

quarta-feira, 21 de junho de 2017

O papa e Mussolini – David I. Kertzer

Em fevereiro de 1922, Achille Ratti é eleito papa pelos seus colegas cardeais, na décima quinta votação, e adota o nome de Pio XI. No mesmo ano em outubro, Benito Mussolini foi nomeado primeiro-ministro pelo rei Vítor Emanuel III. A igreja precisava do poder político para recuperar seus domínios e outros benefícios perdidos no século anterior durante a Unificação Italiana. Mussolini precisava da Igreja para que a população Italiana, de maioria católica, o visse como o líder a ser seguido para a pacificação do país. A história desse acordo é o tema do livro O papa e Mussolini: a conexão secreta entre Pio XI e a ascensão do fascismo na Europa, do professor de antropologia e de estudos italianos da Universidade de Brown (EUA) David Kertzer.  
Apesar das diferenças brutais entre ambos (Pio XI era erudito e devoto; Mussolini, violento e tinha aversão ao catolicismo), os interesses de ambos prevaleceram. Segundo Kertzer, “o fascismo se estabeleceu na Itália graças ao apoio do Vaticano”. Em retribuição, Mussolini restaurou todos os privilégios que a Igreja Católica tinha antes da Unificação Italiana de 1870, como a obrigatoriedade do ensino de religião nas escolas, a presença do crucifixo nas repartições públicas, isenções de impostos e até mesmo a reforma de igrejas. O Tratado de Latrão, assinado em 1929 por Pio XI e Mussolini, entre outras coisas, restitui as propriedades que a igreja tinha pedido no século anterior e cria um Estado independente dentro da cidade de Roma, o Vaticano.  
Mas enquanto conta a história desse acordo, Kertzel traça um perfil de Pio XI, um papa que tinha aversão à democracia e um verdadeiro pavor de qualquer coisa parecida com comunismo, e desmistifica alguns fatos da biografia de Mussolini. Um desses mitos é sobre a famosa Marcha sobre Roma, a manifestação fascista que teria contribuído para a ascensão de Mussolini ao poder. Sempre se falou em 300 mil fascistas bem armados praticando atos de violência contra opositores. Kertzel afirma que não passavam de 26 mil homens mal armados (alguns desarmados). O que aconteceu para que o evento alcançasse a objetivo foi a falta de vontade do rei Vítor Emanuel em combatê-los. O soberano, assim como o papa, via em Mussolini não apenas um mal menor, mas a melhor forma de combater os comunistas. 
Esse acordo dura até 1939, quando Pio XI prepara dois documentos para denunciar a aliança de Mussolini com Hitler. No entanto, o pontífice morre na véspera da leitura de um dos documentos. Só foi possível contar uma versão diferente da narrativa padrão do Vaticano sobre esses acontecimentos depois que a própria Igreja liberou, em 2006, documentos referentes ao papado de Pio XI, como também vieram a público documentos do Arquivo do Jesuítas, em Roma. A expectativa agora é que o papa Francisco libere os documentos referentes ao papado de Pio XII (1939-1958), sucessor de Pio XI, chamado por muitos de “o papa de Hitler” pelo seu silêncio com relação ao Holocausto.


quarta-feira, 14 de junho de 2017

O rebelde do traço: a vida de Henfil – Dênis de Moraes

“Na minha opinião, o cartunista não pode trabalhar a serviço do Estado. Devemos ser eternas ovelhas negras”. (Henfil)
Publicado originalmente em 1996, O rebelde do traço: a vida de Henfil, do jornalista Dênis de Moraes, recebeu uma edição revista e ampliada no ano passado, vinte anos depois da publicação original. É um livro de fazer rir e chorar. Autor de personagens engraçadíssimos, como Graúna Fradinho, Henrique de Souza Filho, o Henfil, maior cartunista brasileiro, era ele próprio um personagem. Os méritos do livro não se resumem a contar a vida de um dos maiores artistas da sua geração, mas contar uma fase da história do Brasil da qual Henfil participou ativamente: a Ditadura Militar e redemocratização do Brasil, a partir de 1985.
Nascido em Ribeirão das Neves (MG), em 1944, foi um dos três filhos do casal Henrique e Maria da Conceição a nascer com hemofilia, doença pouco conhecida no País na época, o que obrigou a família a se mudar para Belo Horizonte. Foi exatamente o medo de se ferir durante as travessuras de infância (a hemofilia dificulta a coagulação do sengue) que levou o pequeno Henrique a se dedicar ao desenho. Seu trabalho como desenhista começa com os cartazes da AP (Ação Popular), organização de esquerda da qual fazia parte seu irmão Betinho, também hemofílico.

Dos cartazes para os jornais e revistas. Foi no seu primeiro emprego, na revista Alterosa, que Henfil recebeu o apelido que o acompanharia pelo resto da vida. Que o batizou foi ninguém menos que Roberto Drummond, editor da revista e responsável pela sua contratação. Mas, ao mesmo tempo em que narra os casos e conflitos, os afetos e desafetos de Henfil, o autor faz um panorama histórico dos anos 70 e 80, mostrando as organizações de esquerda que combatiam o governo militar e como a ditadura agia para reprimir os movimentos clandestinos que se infiltravam em vários setores da sociedade, entre eles o jornalismo. Henfil faleceu em janeiro de 1988, vítima da AIDS, e sua morte marcou, em um certo sentido, a morte do cartum político.      

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Bukowski: vida e loucuras de um velho safado – Howard Sounes

”Bukowski não perdia tempo com drogas, mas era um bêbado barulhento”. 
Começo com uma pergunta: se os textos de Charles Bukowski são autobiográficos, o que há mais para se saber sobre a sua vida? O jornalista britânico Howard Sounes não conheceu Charles Bukowski. Quando ele começou a trabalhar na biografia, o autor já tinha morrido. Todas as histórias de Bukowski: vida e loucuras de um velho safado, publicado originalmente em 1998 (aqui no Brasil, em 2016), foram contadas a partir de entrevistas com amigos, amantes, colegas de trabalho, editores e familiares. Como Bukowski era um missivista fértil, sua correspondência com amigos e amantes também foi fundamental para traçar não apenas um perfil literário, mas para desvendar o que pensava e como pensava esse escritor de textos ácidos e mal humorados (e ao mesmo tempo cômicos).
“A crueldade do pai foi o que mais influenciou a personalidade de Bukowski, seguida de perto da acne desfiguradora que estourou quando tinha treze anos”.
Nascido na Alemanha, filho de mãe alemã e pai americano (um soldado que foi para a Europa durante a I guerra), migrou ainda criança para os Estados Unidos. Com um pai violento e autoritário, uma mãe omissa e um problema terrível de acne, Bukowski teve uma infância e adolescência difíceis. Ainda criança, foi diagnosticado com dislexia, o que despertou a ira paterna, que atribuía seu mal desempenho escolar à falta de vontade de estudar.  Some-se à essa relação conflituosa com pai, o seu problema de espinhas, que dificultava a sua sociabilidade. “Uma infância atormentada me fodeu. Mas é assim que sou, então vou viver com isso”. Em cartas a amigos e entrevistas, o escritor dizia que sua infância foi “triste e assustadora”.   Expulso de casa, entregou-se à bebida e vagou pelo país, sem dinheiro e sem destino. Alistou-se voluntariamente no recrutamento para a segunda Guerra Mundial, mas, apesar de passar no exame físico, foi dispensado por problemas mentais e classificado como 4-F, que significava “psicopata”.
“fante era meu Deus. Ele viria a influenciar minha obra por toda a vida” (Charles Bukowski).
A vida sexual de Bukowski era um problema a parte. Perdeu a virgindade com uma prostituta depois dos vinte anos e conheceu seu grande amor somente aos vinte e oito. Jane Cooney Baker, dez anos mais velha que ele, era uma alcoólatra que perdera o contato com a família e morreu antes dele fazer sucesso. Apesar da relação turbulenta, Jane inspirou o que há de melhor na obra de Bukowski. E a relação com as mulheres que passaram em sua vida não foi diferente em termos de turbulência. Para piorar, muitas delas só vieram descobrir que ele as usava como matéria-prima para seus romances quando foi publicado Mulheres, seu terceiro romance, em 1978. Mesmo mudando os nomes e declarando que aquilo tudo era ficção, causou constrangimento para muitas ex-namoradas ver detalhes íntimos (inclusive sexual) expostos no livro.
“Uma das principais objeções de Bukowski aos escritores Beat era que muitos deles eram homossexuais”.
Se a vida sexual de Bukowski começou tarde, o sucesso também. Apesar de ver vários dos seus textos em pequenas revistas de público restrito, o primeiro livro, Cartas na rua, só foi publicado em 1960, quando o autor tinha quarenta anos. Nele, aparece pela primeira vez Henry Chinaski, alterego do autor. Respondendo a pergunta do início desse texto, a obra de Sounes é importante, pois ele desmistifica algumas das histórias contadas por Bukowski nos seus livros, ou seja, é a mesma história sob um ponto de vista diferente. E faz tudo isso com uma narrativa ágil, fluente e límpido, sem afetações estilísticas. E ainda mostra um lado pouco conhecido do autor, como a homofobia, uma das razões para ele desprezar os escritores Beat, na maioria homossexuais, segundo Bukowski. Mas nem os defeitos tiram a genialidade do “Velho safado”.         

quarta-feira, 31 de maio de 2017

Discobiografia legionária – Chris Fuscaldo

“Não sei se há alguma contradição nisso. Depois que fiz o disco (As quatro estações), comecei a achar que Deus não existe”, Renato Russo, ao ser questionado pelo jornal O Globo se era compatível ser cristão e gostar de se relacionar com ambos os sexos. 
Em 2010, a jornalista e pesquisadora Chris Fuscaldo foi contratada pela gravadora EMI para escrever textos para o relançamento em CD da discografia completa da Legião Urbana que seria lançada naquele ano. Naquela ocasião, a edição mal feita pela gravadora gerou a insatisfação da autora. Depois de realizar novas entrevistas e apurar mais informações, tendo como base os textos de 2010, Fuscaldo publicou, no ano passado, durante as celebrações dos vinte anos da morte do líder da banda, Discobiografia legionária, um apanhado de histórias acontecidas dentro dos estúdios enquanto a banda gravava seus discos.
O livro se divide em três partes. Na primeira delas, Discos de estúdio, fala sobre os bastidores dos oito discos que a banda gravou. A primeira curiosidade está logo no primeiro disco, Legião Urbana, gravado em 1985, quando Renato, ainda um cantor desconhecido, não facilitou a vida da gravadora. Segundo Jorge Davidson, gerente artístico da EMI-Odeon, gravadora com quem o grupo iria assinar um contrato para a gravação de três discos afirma que Renato Russo “não foi humilde nem se emocionou, mas se mostrou gentil e agradável. Fez uma série de perguntas, como se já fosse um artista em negociação”.
Outra curiosidade está no terceiro disco, Que país é esse 1978/1985, lançado em 1987, que foi gravado às pressas, em pouco mais de um mês, por três motivos: a gravadora estava cobrando que a banda fechasse logo o ciclo dos três primeiros discos em 36 meses, prazo já estourado; Renato vivia uma crise de criatividade; e o cantor temia perder para a nova banda dos irmãos Lemos (Fê e Flávio), Capital Inicial, as músicas que o trio tocava na época do Aborto Elétrico. A gravação desse disco também é marcada pelo inicio da crise que levaria a expulsão do baixista Renato Rocha da banda por chegar reiteradamente atrasado ás gravações, perder voos e também por, do ponto de vista dos demais integrantes do grupo, não se dedicar às composições como deveria.   
A segunda parte do livro, Discos ao vivo e coletâneas, mostra que Música para acampamento, disco lançado em 1992, tinha uma única finalidade: ganhar dinheiro. “Não foi um álbum de carreira, foi um disco para a gente levantar recursos”, lembra Rafael Borges, então empresário da banda. Como a turnê do disco V, lançado no ano anterior, tinha sido suspensa para Renato se tratar dos seus vícios (álcool e heroína), da depressão e da doença descoberta em 1990, a banda passava por problemas financeiros. No entanto, o mesmo Rafael tenta minimizar, afirmando que Renato, “jamais faria algo puramente mercantilista”. Por isso, mesmo a distância, o vocalista quis dar aos fãs um disco que fosse relevante e não uma simples repetição, resgatando participações em programas de rádios, em ensaios e em shows para compor um disco ao vivo.
No disco Acústico MTV, os dramas de Renato tiraram o sono da direção da TV especializada em música. Alguns minutos antes de começar a gravação, Renato, ainda no hotel, desistiu de gravar o show alegando dúvidas com relação ao repertório. Problema contornado, foi a vez do baterista Marcelo Bonfá, que resistiu até o último minuto em trocar as baquetas pela vassourinha de jazz, usadas no formato umplugged.
A terceira e última parte, Discos solos, fala sobre os discos que foram lançados sem a participação dos demais membros da banda. No entanto, somente os dois primeiros, The Stonewall Celebration Concert, lançado em 1994, e Equilíbrio distante, de 1995, são projetos pessoais de Renato Russo. Os demais são projetos da gravadora com o intuito, é o que se percebe, de ganhar dinheiro após a morte do músico. The Stonewall Celebration Concert, planejado por Renato desde o ano anterior, foi uma forma do músico manifestar a sua militância pelos direitos dos homossexuais. Stonewall Inn é o nome do bar em Nova York onde, no fim da década de 60, gays entraram em confronto com a polícia. Já Equilíbrio distante foi uma realização pessoal de Renato, descendente de italianos, que queria conhecer suas origens e falar o idioma italiano sem sotaque. Apesar da depressão que o acometeu durante as gravações, é divertido conhecer as histórias que envolvem a produção desse disco.    

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Em uma só pessoa – John Irving

“Acho que você notou que pessoas muito convencionais ou ignorantes não têm senso de humor para travestis”.
Fiz uma releitura de Em uma só pessoa, do escritor e roteirista norte-americano John Irving, publicado em 2012. Se tinha gostado da primeira vez em que li, agora posso afirmar que o livro, além de ser considerado um candidato a clássico, pode ser transformado numa Bíblia para todos aqueles que defendem uma sociedade que respeite as diferenças de qualquer natureza. Com uma narrativa envolvente, Irving se mostra “intolerante com a intolerância”, contando as histórias de jovens que abriam mão de ser o que eram para viver o que a sociedade em que estavam inseridos esperava deles.  
“Nós somos formados pelo que desejamos. Em menos de um minuto de excitação e desejos secretos, eu quis me tornar escritor e fazer sexo com a Srta. Frost – não necessariamente nessa ordem”.
Toda a história é contada por Billy Abbott, um escritor bem sucedido que mora em Nova York e resolve fazer, em 2010, uma retrospectiva das suas paixões ao longo da vida. Paixões essas que incluíam o teatro, a literatura, as mulheres e os homens. Na casa dos sessenta anos, Billy relembra sua infância e adolescência na pequena e fictícia First Sister, no estado americano de Vermont, até a idade adulta, de forma não linear, uma existência marcada pela não aceitação social da sua bissexualidade e pelo amor à arte.
“Será que minha mãe e Nana Victória não conseguiam ver que eu me sentia ao mesmo tempo perplexo e assustado pela vida na terra?”
A narrativa começa nos anos cinquenta na pequena cidade natal de Billy quando ele, aos treze anos, vai fazer seu cartão na biblioteca pública e se apaixona pela escultural Srta. Frost, a bibliotecária quarentona (Billy não sabia, mas a paixão pela Srta. Frost iria moldar todas as paixões que ele teria por toda a sua vida). É ela quem o inicia na literatura, indicando livros sobre “atrações pelas pessoas erradas”, a pedido do garoto, já que Billy, ao mesmo tempo em que nutria a paixão pela bibliotecária, se sentia atraído pelo padrasto Richard Abbott. O coração de Billy também batia mais forte pela sua terapeuta e mãe da sua melhor amiga, Elaine, e por Jacques Kittredge, capitão da equipe de luta livre da escola.
“O lutador com o corpo mais bonito se chamava Kittredge. Ele tinha um peito sem pelos com músculos peitorais absurdamente bem definidos; esses músculos eram de uma clareza exagerada, de história em quadrinhos”.
Numa família de mulheres extremamente críticas, que tentavam a todo custo esconder a identidade verdadeira do seu pai biológico (outro mistério do livro e que será desvendado no decorrer da narrativa) e vivendo numa cidade pequena e conservadora, Billy buscava apoio na figura do seu avô, Harry, conhecido pela competência em interpretar papéis femininos no grupo de teatro amador da cidade e pelo gosto em vestir-se de mulher até o final da vida. A trama atravessa os anos 60 e 70 com Billy buscando sua identidade em várias cidades do mundo e desemboca nos anos 80 em plena epidemia de AIDS, que atingiu vários amigos e ex-amantes do narrador (O capítulo intitulado Um mundo de epílogos é emocionante, com a narrativa das seguidas mortes de amigos, amantes, conhecidos e desconhecidos).
“Eu corria da escola para casa para ler; eu lia correndo, sem conseguir obedecer à ordem da Srta. Frost para ler mais devagar”.

Além da trama em si, o que fascina nesse romance são as indicações bibliográficas que a Srta. Frost dá para o pequeno Billy. São romances dentro do romance. Charles Dickens se torna a grande paixão do pequeno leitor graças às indicações da bibliotecária, mas outros autores são indicados ou citados pelo narrador como marcantes em sua vida: James Baldwin, Emily Brontë, Charlotte Brontë. Para quem gosta de literatura, esse romance é prazer em dose dupla. Ou múltipla! 

quarta-feira, 17 de maio de 2017

A garota dinamarquesa – David Ebershoff

“Os sapatos amarelos pareciam estar perfeitamente a vontade arqueados; era como se ele estivesse esticando um músculo caído em desuso”. 
Tomei conhecimento da história do pintor dinamarquês Einar Wegener quando me falaram do filme A garota dinamarquesa. Descobri que o filme, na realidade, é uma adaptação do romance homônimo do escritor norte-americano David Ebershoff, publicado no ano 2000. Professor de escrita literária da Universidade de Colúmbia e editor da Random House, um das principais editoras em língua inglesa do mundo, Ebershoff ganhou o Prêmio Literário Lambda, no mesmo ano de publicação do livro, e figurou nos dois anos seguintes como uma das cem pessoas LGBT mais influentes, elaborada pela revista Out.
“Muitas coisas são ditas na grande caverna do matrimônio, e felizmente a maioria delas fica pairando inofensiva, negra, pequena e de cabeça para baixo feito um morcego adormecido”.
O próprio Ebershoff explica que o romance “contêm alguns fatos importantes acerca da transformação de Einar, mas os detalhes da história são invenções da minha imaginação”. Einar Wegener era um pintor famoso nos anos 20 pelas suas pinturas de paisagens e pântanos. Casado com a também pintora Greta, que tenta se firmar pintando retratos para os burgueses de Copenhague, Einar é pego de surpresa com um pedido da esposa. Como a sua modelo tinha faltado à sessão, Greta pede ao marido que coloque um vestido e pose para ela, a fim de terminar o quadro mais rapidamente.
“Lili olhou para Greta, que usava um vestido preto, e sentiu-se grata por tudo que jazia à sua frente. Do nada surgira Lili. Sim, era preciso agradecer a Greta”.
Esse acontecimento representará um divisor de águas no casamento de ambos. Foi como se um gatilho tivesse sido acionado na alma de Einar. Outras vezes Greta fez o mesmo pedido e, gostando da brincadeira, sugeriu a Einar que comparecesse a festas como Lili Elbe, a prima de Einar. O que, à princípio, era apenas uma brincadeira do casal para ajudar Greta a pintar quadros, se transforma numa segunda personalidade de Einar. Lili começa a sair e atrair a atenção de rapazes na rua, “aparece” em casa sem se fazer anunciar e, como se fosse outra pessoa, se mostra linda e doce para Greta.
“Tinha a impressão de ter a alma presa numa jaula de ferro forjado: era o seu coração enfiando o focinho nas costelas, enquanto Lili mexia-se lá no fundo, despertando e esfregando o lado do corpo nas barras do corpo de Einar”. 
Fazendo inúmeras pinturas tendo Lili como tema, Greta se torna uma pintora famosa e valorizada, e Einar vai descobrindo cada vez mais sua verdadeira personalidade. A partir de 1929, Einar/Lili, certa do que quer, se submete a cirurgia de mudança de sexo, algo considerado incomum e, para muitos médicos, impossível. Apesar de a história girar em torno de Einar/Lili é impossível não observar a força de Greta, uma mulher quer percebe seu marido se descobrindo outra pessoa e o apoia de forma irrestrita. Mesmo sendo classificada como uma história de ficção é inspirada em personagens reais e, por que não dizer, fortes, que enfrentaram a sociedade em que viviam e trouxeram, nos longínquos anos 30, uma discussão sobre sexo e gênero.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Submissão – Michel Houellebecq

“Só a literatura permite entrar em contato com o espírito de um morto, da maneira mais direta, mais completa e até mais profunda do que a conversa com um amigo”.
O segundo turno da eleição na França, entre o centrista Emmanuel Macron e a candidata de extrema direita Marine Le Pen, chamou a atenção do mundo para o país que tem a maior população muçulmana na Europa. A imigração (não apenas muçulmana) e a necessidade de impedir novos ataques terroristas em território francês, ao lado do papel do país na União Europeia, têm sido os assuntos mais explorados nos debates entre os candidatos, que têm propostas diametralmente opostas sobre esses assuntos. Para mim, a eleição na França me levou a releitura de Submissão, sexto romance do francês Michel Houellebecq. Em setembro de 2015 já tinha falado sobre ele aqui.
“No fundo, meu pau era o único dos meus órgãos que jamais tinha se manifestado à minha consciência pelo viés da dor, e sim do gozo”.
Famoso e premiado, nascido na França em 1958, Michel Houellebecq é o tipo de escritor-filósofo que, ao invés de apenas escrever uma história que entretenha, usa suas tramas para palpitar sobre tudo o que lhe interessa, desde história e religião até costumes, passando por gastronomia e a geopolítica do Mediterrâneo, sempre utilizando um olhar corrosivo. E ele não foge dessa característica em Submissão, romance lançado no início de 2015, exatamente no dia do atentado ao jornal Charlie Abdo, quando 12 jornalistas foram mortos, entre eles Bernard Maris, amigo pessoal de Houellebecq, o que o levou a cancelar a turnê de promoção do livro.
“Um casal é um mundo, um mundo autônomo e fechado que se desloca no meio de um mundo mais vasto, sem ser realmente atingido por ele...” 
François é um professor de literatura de meia idade da Sorbonne que dorme mal, come mal e só se preocupa em manter romances com alunas duas décadas mais novas. Homem culto e solitário que despreza o mundo ao seu redor, especialista e fã do grande representante do realismo literário Joris-Karl Huysmans (a ponto de viver comparando sua vida ao do escritor e até mesmo tentando imitá-lo), François descrê de tudo, dos laços afetivos duradouros à socialdemocracia. E assim ia a vida do professor até que um fato politico muda tudo.
“A humanidade não me interessava, até me repugnava, eu não considerava de jeito nenhum os humanos meus irmãos...”
Em 2022, a Fraternidade Muçulmana chega a Presidência da República na França, com Mohammed Ben Abbes, um líder carismático e moderado, e logo as mudanças se fazem sentir. O desemprego diminui por que as mulheres devem ficar em casa; aumenta o auxílio-moradia, mas diminui o da educação; a poligamia é incentivada (quem tem mais de uma esposa ganha mais do que quem só tem uma). Com dificuldades para se adaptar à nova realidade, François é induzido a se aposentar precocemente.
“Nietzsche enxergara muito bem, com seu faro de puta velha, que o Cristianismo era no fundo uma religião feminina”.

Meses depois é convidado a voltar para a universidade por um amigo carreirista e agora convertido ao Islã (É emblemática a figura de sua esposa mais nova, de 15 anos, vestindo uma camiseta da Hello Kitty). Mesmo retornando à cátedra, François continua acompanhando tudo com a mesma indiferença explícita, amoral e chocantemente neutra. O título do livro é uma tradução literal de “Islã”.