sexta-feira, 15 de março de 2013

Entrevista: Alan Pauls


Nascido em 1959, na capital da Argentina, Alan Pauls foi professor de Teoria Literária na Universidade de Buenos Aires (UBA) e fundador da revista ‘Lecturas Críticas’. É também roteirista e crítico de cinema. No Brasil, já foram publicados seus livros ‘Wasabi’, História do cabelo’, ‘História do pranto’ e ‘O Passado’, este adaptado para o cinema por Hector Babenco. Nesta entrevista, Pauls fala sobre os escritores com quem dialoga, sobre os problemas da adaptação e sobre a presença constante da pornografia em suas narrativas.
- Li em algum lugar que a relação que uma pessoa tem com o mar é a mesma que ela tem com a vida. Como um “devoto da praia”, você concorda?
ALAN PAULS: Se for mesmo assim, a minha relação com a vida é pouco vital, bastante preguiçosa e letárgica, cem por cento oblomoviana, citando o grande herói do romance de Goncharov, ídolo de todos os vagabundos do mundo. Não gosto muito de nadar, nem de desafiar o mar, nem de praticar esportes náuticos. Tenho muita dificuldade em ajustar a máscara de mergulho e fico péssimo com pés de pato. Gosto apenas de entrar no mar e me deixar maltratar pelas ondas, quando há ondas, ou ficar boiando por alguns minutos como uma morsa adormecida, quando não há ondas, depois sair e retomar meu livrinho no trecho apaixonante interrompido pelo calor.
- Em ‘A Vida Descalço’, como em outros livros seus, o narrador evoca sua infância. O que torna a infância tão sedutora? Quais são os laços entre a meninice e a vocação literária?
PAULS: Não é a infância que me seduz, e sim a relação que temos com ela. Como a idealizamos, corrigimos, exageramos, deformamos. Como confiamos nela, como ela nos enternece, como a detestamos. Como identificamos nela a causa última de nossa miséria atual, como a fazemos responsável por tudo, como a usamos para nos escondermos ou nos justificarmos, nos eximirmos de culpa. Sempre me intrigou muito esse fetichismo desmedido da infância. Eu me pergunto se isso não tem a ver com o estranho e perverso prazer de olharmos o mundo na condição de vítimas.
- Você já disse que a praia não combina muito com a tradição intelectual, mas nesse livro a praia aparece como um lugar de introspecção, de descoberta da vocação, da identidade, dos desejos… Não é uma contradição?
PAULS: Não. A praia pode ser um cenário de imaginação, mas é completamente refratária à imagem clássica do intelectual, a sua figura, seus rituais de trabalho, suas ferramentas, inclusive sua palidez proverbial, como a dos anarquistas russos. Podemos imaginar Kerouac na praia, mas não Sartre com seu cachimbo, nem Althusser com os três volumes de “O Capital” debaixo do braço.
- “A praia é como uma grande tela, na qual se pode projetar todo tipo de imagens e histórias audiovisuais”. Fale sobre a relação entre o mar e o cinema, entre as imagens e as palavras na sua literatura.
PAULS: Gosto muito da forma como Godard filma o mar. Em muitos de seus filmes há planos de ondas que se quebram, ou da água brilhando como um metal. Aparecem de improviso, cortando outras imagens e ações, como flashes de uma ordem eminentemente musical, gráfica, abstrata. De resto, na minha literatura a imagem não tem o menor papel. Quando escrevo não vejo. Melhor ainda: escrever é não ver.
- Fale sobre as fotografias que ilustram o livro.
PAULS: São fotos minhas, de infância. Mas não sou eu, ou não mais eu, em todo caso. Meu pai as tirou, o último fundamentalista da praia e do bronzeador solar, e da mania de tirar fotos sob o sol do meio-dia que tive a honra de conhecer. Gosto que não sejam boas fotos, que o foco vacile, que nada seja demasiado nítido. Gosto de seu “conceitualismo”: um sujeito infantil e, á sua volta, o deserto. Esse grau zero da situação é a praia.
- A leitura de Julio Cortázar marcou suas férias de infância. Qual foi a importância desse escritor na sua vida e na literatura argentina? Com que outros escritores argentinos você mais dialoga?
PAULS: Como muitos, eu comecei a escrever lendo Cortázar – e a escrever com gerúndios, como ele Como quase todos, deixei de ler seus livros assim que me dei conta de que queria escrever seriamente, isto é, assim que deixei de ser um adolescente, alguém que confundia escrever com ser especial. Mais que um escritor, Cortázar acabou sendo uma espécie de promotor literário, como um tio vagamente juvenilista que alenta e estimula com ênfase, exagerando um pouco, ali onde outros, mais geniais mas menos cool, se mantêm em silêncio, ou esperam, ou murmuram coisas incompreensíveis. Borges, naturalmente, é o gênio absoluto, aquele que pensou tudo – inclusive seus inimigos, inclusive toda aquela literatura que não tem nada a ver com a sua. Roberto Arlt é um monstro, um escritor único, um original total. Mas hoje, se dialogo com alguém, dialogo com um morto: Manuel Puig, o Borges queer.
- O fato de ter sido professor de Teoria Literária ajuda ou atrapalha o seu processo criativo? A carreira acadêmica pode aniquilar uma vocação literária?
PAULS: Eu não recomendaria entrar para a academia a ninguém que quisesse escrever, mas detesto a ideia de que refletir sobre a literatura – que é o que se supõe que alguém vai fazer quando estuda letras – impede de escrever. É uma ideia antiga, vulgar, covarde. Nem sequer é uma ideia, é o reflexo condicionado dos indigentes que confundem escrever com “contar histórias”.
- Você escreveu o roteiro para um filme sobre a passagem de Marcel Duchamp por Buenos Aires em 1918. Fale sobre esse projeto.
PAULS: É um documentário conjectural, que especula sobre os nove misteriosos meses que Duchamp passou em Buenos Aires, quando em Buenos Aires só era frequentada por prófugos, anarquistas, por aqueles que queriam desaparecer da face da Terra. Ele veio com sua namorada e com uma marchande americana que estava de olho nele.  Enquanto ele esteve em Buenos Aires, manifestações de operários ganhavam as ruas e eram massacradas pela polícia, mas ele nunca disse uma palavra sobre isso. Gostou muito da manteiga argentina. Yvonne, a namorada, só ficou poucos meses, farta de ser confundida com uma prostituta pelos homens, quando caminhava sozinha pelas ruas. O episódio é citado pela notável memoir que escreveu a marchande sobre a condição da mulher nesse remoto rincão do planeta. Sozinho, Duchamp se dedicou às únicas atividades que podiam rivalizar com a arte: respirar e jogar xadrez.
- Sendo também um roteirista, que questões te atraem numa adaptação? Que relação você estabelece entre a literatura e o cinema? O que achou da adaptação de seu livro “O Passado” dirigida por Hector Babenco?
PAULS: O cinema e a literatura só me dizem algo quando soltam faíscas, quando se traem, se contradizem ou se esquecem mutuamente. Eles me aborrecem quando se respeitam, são fiéis, se obedecem. Eu teria gostado se a versão de Babenco fosse mais pessoal, que se desentendesse mais do romance, que não estivesse tão atenta ao argumento do livro, porque definitivamente, o argumento era o que o livro tinha de menos interessante. Mesmo assim, há algo no tom farsesco-aterrorizante no filme de que gosto muito. Achei o filme bastante “polanskiano”. O problema era que eu não podia dizer a Babenco que seu filme era muito polanskiano. Até que um dia eu lhe disse que gostava do tom do filme, e ele me disse: “Sim, pensei muito em ‘O bebê de Rosemary’”.
- Há sempre um componente pornográfico nas cenas eróticas de seus livros, como no episódio da garrafa em ‘O Passado’. O que pensa da pornografia na literatura?
PAULS: No combate entre o erotismo e a pornografia, meu coração sempre fica do lado da pornografia. O sexo é sempre pornografia. Não pelas porcarias que fazemos quando o praticamos, mas porque sempre o praticamos com alguém que está nos olhando. Os escritores que fizeram algo interessante com a sexualidade – de Sade a Henry Miller, de Petrônio a Georges Bataille – foram sempre sensíveis ao registro seco e brutal do pornô. Os véus, os claro-escuros, toda essa elegância rançosa do erotismo nunca tiveram nada a ver com a arte. É pura publicidade.
- Em ‘A Vida descalço’ existe uma tensão permanente entre o vivido e o inventado. O registro autobiográfico, o uso da primeira pessoa, joga com as convenções do romance confessional e da literatura de formação, diluindo as fronteiras entre os gêneros… Por quê?
PAULS: Porque uma autobiografia não diz a verdade, não confessa nem recorda nada. Ela fabrica um mito. E todo mito nasce dessa vacilação entre os gêneros.
* Extraído do Blog Máquina de escrever, do jornalista Luciano Trigo

Nenhum comentário:

Postar um comentário