segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A paz que me atormenta


Tem gente que leva uma vida agitada e daria um dedo de uma mão por um pouco de paz e sossego. Eu tenho-os de sobra e gostaria de ter levado uma vida agitada, nem que fosse agora, beirando a velhice. A paz e o sossego sempre foram o meu tormento! Sempre tive a impressão de que a minha única missão era gastar os minutos que me restavam. A minha vida sempre foi de uma mesmice assustadora, de uma normalidade desalentadora, a começar pelo parto que foi normalíssimo. Nada de sobressaltos, emergências, correrias. Minha mão sentiu as dores, foi para o hospital e eu nasci. O caminho escandalosamente aberto, era só não dobrar nem à direita nem à esquerda.
- Siga em frente! – berrava o meu instinto naturalíssimo de feto prestes a virar um ser humano normal numa vida normal.
Fui criado num ambiente de afeição e segurança. Tudo dentro da normalidade num espaço dominado por um filho único. Afeição só pra mim. Segurança só pra mim. Atenção só pra mim. Tudo só pra mim. Que saco! Talvez tenha sido isso que me transformou no bunda mole que sou hoje e sempre fui por toda a minha vida. Como minha família tinha uma situação remediada, durante a infância sempre comprava as minhas amizades.
- Vamos brincar? – propunha aos amiguinhos.
- O que você tem para nós? – era a pergunta que escutava invariavelmente independente a quem dirigia o convite.
E eu sempre tinha: balinhas, brinquedos mais incrementados e até mesmo dinheiro. Para mim não tinha importância, o que eu queria era amigos, mesmo que comprados.  Na escola era a mesma coisa: bombons, brinquedos, lápis bonito, borracha colorida e dinheiro para pagar lanche de todos aqueles que eu queria ao meu lado.
Tornei-me um adolescente feio, magricela e tímido. Continuei comprando meus amigos e tentava fugir da minha vida tormentosamente normal sonhando. Nesses sonhos eu era sempre o centro das atenções e das admirações. Num sonho eu era um jogador de futebol fora de série, um craque que desmontava a defesa adversária como quem desmancha um castelo de areia. Em outro eu era um lutador faixa preta em uma arte marcial qualquer que namorava a garota mais cobiçada e que se metia em brigas contra brutamontes covardes que humilhavam os mais fracos. Sonhos...
Aos 19 anos entrei na faculdade de engenharia civil. Passei a sonhar construindo lindos e quase infinitos arranha-céus, projetando lindas cidades que me renderiam reconhecimento e prêmios. Aos 20 anos aconteceram duas coisas que, definitivamente, não mudariam a minha vida deixando-a do mesmo jeito que sempre fora, ou seja, escandalosamente normal.    
O primeiro acontecimento foi eu ter arranjado um emprego num banco. Desde o início tinha a convicção que esse emprego seria útil enquanto fosse estudante, para ajudar nas despesas. Em hipótese alguma queria seguir a carreira de bancário. Eu queria construir arranha-céus! A rotina era dura: acordava às seis e meia, as oito estava no banco, onde ficava até às cinco da tarde com uma hora de almoço. Saía do banco e ia direto para a faculdade, chegando em casa onze da noite. Mas valeria o sacrifício! O tempo foi passando, terminei a faculdade e sempre ali, naquela rotina.
- Quero trocar esse cheque.
- Sim, senhor!
- Transfere essa quantia da poupança para a conta corrente.
- Sim, senhor!
- Paga esse boleto pra mim, por favor.
- Sim, senhor!
 Era sempre aquela mesmice. Nos meus devaneios imaginava um bando de assaltantes invadindo o banco com armas em punho e fazendo todos reféns. Entre os reféns, além de mim, claro, estava aquela gostosinha que sempre vinha ao banco. Cercados pela polícia, os meliantes ameaçariam a mocinha e eu, o herói, interviria, não deixando os fora-da-lei maltratarem-na. Seria agredido por eles, mas sobreviveria para receber a gratidão da gostosinha sem nome. Mas nada disso acontecia e eu seguia a minha rotina de cheques, boletos, transferências. Como resultado, trabalhei 35 anos no banco me aposentei e não construí uma caixa-d’água sequer. Uma mísera escada sem corrimão! Que dirá um arranha-céu. Meu diploma virou comida de traça. Os cálculos matemáticos, longínqua lembrança.
O outro acontecimento foi ter conhecido minha esposa. Eu era virgem. Pior: nunca tinha sequer beijado uma mulher. Maria da Graça é dois anos mais nova que eu e é o ser mais ser graça que já conheci. O seu nome só pode ter sido uma piada, pois é uma criatura inconspícua.
- A pior coisa do mundo é ir a um restaurante com muita fome. Qualquer comida insossa fica gostosa. – raciocinava frequentemente.
Tudo bem que não sou nem um galã de novela das oito. Mas se não tivesse sob pressão hormonal teria tido paciência para esperar surgir algo mais atrativo. Paciência, estamos casados há quarenta anos. O que de mais emocionante aconteceu na nossa vida conjugal foi a ida semanal à igreja. Nosso programa dominical era tão empolgante que bastava o padre começar a liturgia, eu cochilava. Nem Deus continha meu tédio. Durante esse tempo imaginei casos extraconjugais, verdadeiros romances hollywoodianos com mulheres belíssimas. Mas a minha insipidez, a minha covardia, a minha timidez não permitiram nem que eu olhasse para uma mulher que não fosse a minha Maria sem graça.
Tivemos uma filha, Luíza. Não sei a quem puxou, mas não supera por pouco a sem graceira da mãe. Desde quando Luíza nasceu, torci para ela ser a adolescente que não fui. Fazer tudo aquilo que tive vontade, mas faltou coragem: beber, fumar maconha, dançar com os amigos, sair escondida com meu carro, participar de movimentos políticos, namorar. Claro que nem sob tortura eu confessaria esses meus sonhos nem para ela nem para a mãe dela. Mas a criatura somente a muito custo solta um tímido sorriso, só sai de casa para ir para a igreja com a mãe, não fala nem o necessário. Espero que consiga arrumar um hormônioman como a mãe dela arrumou...
Agora eis-me aqui, esperando a morte. Que eu espero que seja mais emocionante do que a vida. Quero morrer de acidente de avião, de naufrágio de navio, de uma explosão, atacado por um jacaré no Pantanal ou por uma onça na floresta Amazônica.  Algo emocionante, digno de ser contado pelos meus netos, se é que a sem graça da Luíza vai me dá algum. 
Só falta eu morrer de um mal súbito durante o sono. A pior das mortes! E ainda vir uma daquelas beatas amigas da Graça, uma daquelas papa-defuntos na beira do caixão e dizer:
- Pobrezinho, parece que tá dormindo.
Juro que me levanto e grito na fuça da desgraçada:
- Dormindo tá a puta que te pariu!
Já que morri em vida, quero pelo menos viver na morte.

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