quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O funeral

Não vou dizer que é desconfortável. Mas também não é confortável. Doem um pouco as costas. Não sei com vim parar aqui, mas sei que fiz por onde. Nunca fui adepto da vida saudável. Sempre fui um defensor de se fazer a relação custo benefício. Mais vale viver sessenta bem vividos do que oitenta pela metade, que é igual a quarenta. Portanto, bebi, fumei e fodi como se já tivesse no sexagésimo ano. Agora estou aqui.

Lá vem o Moreira. Esse filho da puta passou a vida dando em cima da Sandra. E se diz meu amigo! Aposto que não vai esperar o defunto esfriar. Sei que a Sandra nunca foi um poço de virtude, afinal sempre foi muito amável. A virtude é neurastênica e azeda! Se ela fosse santa eu não teria ficado tanto tempo com ela. Nem ela comigo! Mas tudo bem. A morte torna o homem imune ao chifre.

Conheço o Moreira a mais de vinte anos. Sempre deu em cima de todas as mulheres com quem namorei ou casei. Enfeitar-me com cornos foi a sua obsessão.

- Cachorro!!! – Nada me impede de um desabafozinho.

- Olha a Selminha!!

Acho que o amor mais puro, mais verdadeiro, é aquele que um homem sente pela cunhada impossível. Só o conhece quem a possui. Não foi esse o meu caso. A Selminha sabia que eu a cobiçava. Vestia roupas provocantes. Lançava-me olhares lânguidos. Deu pra muita gente, menos pra mim, que sou da família. Talvez por causa disso. Ela entra na câmara ardente como pisa na passarela. Sabe que é gostosa! Mas está com o semblante compungido. Será que ela está realmente triste ou está só simulando mais uma vez como fez comigo a vida toda?

Essa roupa tá apertando o meu saco. O defunto era menor... Sem trocadilhos.

- Olha quem vem entrando...

Seu semblante não demonstra nem tristeza nem alegria. Só indiferença. Ela sempre foi assim. Nunca demonstrou o que sentia. Dulce. Doce. Apesar da cara fechada. O que nos faz não ficar ao lado do seu grande amor? É o que me perguntei durante os vinte anos após ter me separado da doce Dulce. Uma mulher de aparência firme, mas sensível na essência. Foi o meu grande amor! Um amor diferente do que senti pela cunhada impossível. Esse, um amor carnal. Aquele, um amor de alma. Como sou (ou era) um ser carnal e a cunhada era impossível, fiquei com a Sandra.

- Pintou sujeira!

O Salomão. Esse cara é muito chato! Ele sabe tudo. Não dou cinco minutos, ele vai começar a dissertar sobre o processo de embalsamamento. Se não for sobre isso, será sobre qualquer outra coisa. É um analfabeto e não se dá conta disso.

Será que não tinham um caixão mais espaçoso?

Aqui tem choro para todos os gostos. Tem gente que nunca vi e está se debulhando em lágrimas. Tem outros de quem não gostava que estão inconsoláveis. Será que os julguei mal? Têm outros tantos que sabidamente não gostavam de mim e vem reverenciar o defunto. A morte beatifica os desafetos. Pelo menos em público.

Tem também reza para todos os credos. Nunca me liguei nisso. Sempre fui indiferente ao metafísico. Não sou agnóstico. Mesmo por que o agnóstico é um ateu cagão. Eu sempre fui simplesmente indiferente.

A sala está cheia. Algumas senhoras choram como carpideiras. Esse cheiro de flores me causa enjôos. Mas não posso sair como fazia nos velórios alheios.

- Puta que pariu, chegou o pastor.

Os pastores são todos feitos da mesma fôrma. Terninho cheirando a naftalina, Bíblia com bordas douradas debaixo do braço, a mesma entonação na voz e o mesmo discurso. Ele tá falando bem de mim. Cretino! Vivia dizendo que eu era o emissário do capeta. Será que ele tá querendo convencer Deus de que eu prestava? Por que quem tá aqui e me conhece sabe que eu não era o que ele tá dizendo. É a complacência post mortem.

- Lá vem o Pururuca!

Bêbado como um gambá, Pururuca entra na Câmara ardente tropeçando em quem estava pela frente e chorando escandalosamente. Era o bêbado oficial da vizinhança. Ninguém conseguia ter raiva de pururuca. Era um bêbado inofensivo. Pelo era.

- Sai daqui, Filho da puta!

Pururuca mete a mão na minha testa e, aos prantos, quer me beijar. Porra, pururuca! Por que tu não se atreveu a fazer isso quando eu estava vivo? Ia levar uma bofetadas pra aprender a ser homem. Pobre Pururuca.

Acho que está na hora. Escurinho aqui.

- Ops – tem alguma coisa se mexendo.

- Olha quem me carrega!

O Amaral, o Tartaruga, o volta e meia e o Samuca. Grandes companheiros! Mas acho que estão meio de porre, pra variar. A coisa tá balançando. E a ladainha não para. Se eu dependesse disso pra ir pra algum lugar já estaria lá.

Tá nublado. Dia perfeito pra um enterro. Pra o meu, inclusive.

- Ops! de novo. Estou descendo. Barulho. Estão jogando algo em cima de mim. Acho que é terra.

Silêncio.

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