quinta-feira, 10 de março de 2011

O falso cadáver

Apertava os olhos para evitar a claridade provocada pelo sol abrasador. O trânsito estava lento, os carros hermeticamente fechados na tentativa inútil de deter nos seus interiores o ar gelado do sistema de refrigeração. Tomo mais um gole da cerveja gelada que desce rasgando deliciosamente a minha garganta.

- Garçom, mais uma!

Deve ser meio dia e meia. O bar está quase vazio. Além da minha mesa, mais duas outras estavam ocupadas. Na mesa ao lado um casal de meia idade. Ele cochichava algo que parecia a ela muito interessante. Na mesa do fundo quatro jovens tomavam cerveja e conversavam ruidosamente. O garçom tem um ar enfastiado, preguiçoso. Deve ser o calor, penso. Trás a cerveja que pedi com ar de tédio.

- Tá um sol pra cada um! – comento. Mas não obtenho nenhuma resposta.

As arvores não se mexiam, não havia vento. Na calçada, bem próximo do meio-fio, um cachorro estava deitado, imóvel. Dormia? Estava morto? Não sei. Tinha o pêlo preto. Era, com certeza, um desses cães errantes que andam com o rabo entre as pernas e o focinho rente ao chão farejando o que comer.

Esqueço o cão. Passo a olhar o céu sem nuvens, o sol inclemente. Vejo lá no alto, um pontinho preto em movimento. Deve ser um urubu, penso. Fico me imaginando no lugar da ave de rapina. Deixar-me flutuar com as asas paradas abertas, o vento batendo no rosto. Urubu tem rosto, me pergunto. Avistar os telhados das casas, uns vermelhos cor de barro, outros cinzas cor de amianto. Entre os quarteirões, ruas com pequenos pontos em movimento, que não lhe interessa. O que lhe interessa são os pontos parados, imóveis, de preferência mortos.

Deve ter avistado um ponto preto parado, pois percebi claramente que a cada volta que dava, ficava mais próximo do chão. Será que ele tava de olho no cachorro, me perguntei. Passaram-se dez minutos quando aquela imensa ave preta pousou com as asas abertas, sobre um muro do outro lado da rua, fechando-as logo depois. E ficou parado, observando o movimento. Fiquei observando, ora o urubu, ora o cão imóvel. Estaria morto?

Passaram-se uns minutos, talvez dez, talvez quinze, até que o urubu desceu do muro. O cachorro continua imóvel. A ave aproxima-se com aquele jeito de quem não quer nada, olha para um lado, olha para o outro lado. Para. Aproxima-se um pouco mais. E o cachorro imóvel. Se respirava, nem eu nem o urubu percebíamos. Este inclina um pouco a cabeça, aproximando o bico do cachorro, como fareja. Dá mais um passo. De repente, afasta a cabeça e, rapidamente, dá uma bicada violenta na barriga do cachorro que, soltando um ganido alto, dá um salto acrobático, retorcendo-se em pleno ar, formando quase um “S”. Mal as patas conseguem tocar o chão, sai em desabalada carreira, com o rabo entre as pernas e as orelhas repuxadas para trás. Ao mesmo tempo, o urubu, igualmente assustado, bate as asas tentando, desajeitadamente, voar para trás.

O defunto tá vivo, deve ter pensado o urubu, se urubu pensasse. Assustado, volta para seu abrigo sobre o muro com a sensação se que o almoço fugiu. Com um sorriso de canto de boca, tomei mais um gole da cerveja.

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